O que faz uma artista convidar uma certa alguém pra curar a sua exposição? Eu confesso que foi isso que pensei quando recebi o convite da Isa. Qual a natureza desta relação estabelecida entre a curadora e a artista? Não pretendo aqui explicar de forma lógica e cartesiana como se deu a experiência de curar esta exposição da Isadora, mas vou tentar usar um dos conceitos que ela mesma usou em seu processo artístico. Este texto ou como preferimos chamar, esta carta aberta será uma profusão de pensamentos, algo que caracteriza a escrita primorosa de Clarice Lispector e que também é referência para a artista que relaciona a literatura com a pintura na construção destes trabalhos. É preciso começar de algum lugar, é preciso estar à tal ponto apaixonada por um determinado assunto que ele te consuma por inteiro por semanas, por meses, por anos, sem a menor possibilidade de que ele se esgote ou que ele perca a graça. Esta série de pinturas da Isa, me parecem ser um pouco este mergulho em águas profundas e meio turvas na busca por descobrir este assunto precioso pra ela. Assim como as figuras humanas que performam suas obras, Isadora também se enfia de corpo inteiro nesta lagoa de subjetividades e angustias e deixa de fora somente o nariz. Que é pra poder respirar, mas também se manter imersa e perdida por alguns anos neste processo de se entender enquanto artista, enquanto mulher. Duvido até que o artista algum dia consiga submergir dessas águas de se compreender por inteiro. Não à toa, a água é o elemento fundamental que figura as obras desta série. O estado da água é movediço, é fluido, ela escapa entre os dedos, e corre livre por onde deseja, sem muito controle. O que me ocorre, é que contrariamente ao que se espera de um artista frente a uma tela que será pintada à óleo, e que supostamente possui um caráter mais estável, seguro. Se propor a pintar a água, é desafiar-se enquanto artista, é colocar-se à prova. Tenho a impressão de que a Isa neste tempo todo perseguiu uma contradição. O desejo de fixar a imagem de um elemento líquido que não se deixa fixar, que não se permite conter, que lhe escapa. E esse movimento que é a condição de ser água, é também o movimento das histórias que estas obras nos contam. O que pôde ser traduzindo em pintura e permaneceu, e o que escapou da narrativa que é processo e que sugere que a obra desagua em outras obras e segue seu curso. Diferentemente dos grandes heróis, que travam suas batalhas sozinhos e vencem os desafios mais hediondos, pra chegarem no final e receberem os lourossó pra eles. A Isadora, se colocou à prova com algumas aliadas, ao assumir que em seu processo artístico, mulheres amigas e também artistas, caminharam junto dela. Cláudia Andujar e sua fotografia apaixonante do rosto de um jovem indígena yanomami dentro de um rio que serviu como o ponto de partida para todo este projeto. Georgia Bergamin, artista e amiga visceral que entregou seu corpo aberto e disponível à experiência de performar as fotografias que deram sequência às pinturas desta série. Clarice Lispector, que através de sua escrita honesta em forma de “fluxo de consciência”, escancara que estar viva é estar confusa e incompleta. E que escrever enquanto se pinta, é carregar palavras escondidas junto das pincelas. E Leticia Ichnaz, também artista que dividiu seu conhecimento em fotografia e ajudou a Isa a treinar seu olhar através da lente de uma câmera e delimitar a composição de um quadro. Elas e outras que não citei aqui, contaminaram seu trabalho, dividiram experiências e isso é de uma coragem imensa, é chegar ao final de um ciclo e estar ao lado de outras mulheres compartilhando os louros, um sucesso coletivo, generoso. Fico muito feliz de ter sido convidada pra também integrar esta gangue da pesada. Posso dizer que a curadoria neste caso foi ter o previlégio de passar uma manhã inteira com a Isa tomando café passado e entrelaçando nossos processos artísticos com a vida banal, que se a gente olhar bem, não tem nada de banal, é o material mais interessante que se tem pra desvendar.

Bruna Granucci

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Amanda Loch